Dossiê Fintechs: as manobras cambiais no Banco Central de Campos Neto
Mas o que acontece quando mudanças regulatórias, feitas sob
o discurso da “modernização”, parecem beneficiar justamente instituições sob
investigação por crimes graves?
Duas resoluções elaboradas durante a gestão de Roberto
Campos Neto à frente do Banco Central, sob a justificativa de modernização das
normas, acabaram por blindar instituições financeiras de processos criminais e
do risco sistêmico.
Como uma Mudança na Lei Blindou Bancos em um Escândalo
Bilionário
Uma mudança na legislação cambial, solicitada pelo próprio
Banco Central (BC), teve o efeito prático de anistiar cinco bancos sob
investigação da Polícia Federal: Master, Genial, Travelex, Santander e
Haitong.
A investigação, batizada de Operação Colossus, apurava um
esquema bilionário de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
O pilar jurídico do caso da Polícia Federal se baseava no
princípio da responsabilidade compartilhada entre bancos e clientes
na classificação das operações de câmbio, um padrão em vigor desde 1962.
A nova lei, regulamentada pela Resolução 277 do BC,
transferiu essa responsabilidade inteiramente para o cliente. Com isso, a base
legal para a acusação foi eliminada, efetivamente apagando o crime pelo qual os
bancos estavam sendo investigados.
As condutas, ocorridas entre 2017 e 2022, deixaram de ser
ilegais sob o novo marco, tornando a persecução penal impossível.
Pode-se dizer que essa manobra foi um desmantelamento
retroativo do arcabouço legal sobre o qual uma investigação federal
multibilionária foi construída – tanto que a conclusão da Polícia Federal sobre
a conduta dos bancos foi taxativa:
“…constatado a existência de ‘cegueira deliberada’ para
irregularidades do mercado câmbio e para a lavagem de dinheiro por parte dos
bancos.”
Com a Resolução 337/2023, que simplificou drasticamente a
lista de códigos de câmbio, o risco para as instituições diminui ainda mais,
pois as classificações se tornam mais genéricas, dificultando a acusação de
erro formal de registro por parte do banco.
O novo foco da PF e do COAF passa a ser estritamente na
eficácia dos controles de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (PLD/FT) do banco. Ou
seja, a investigação não se deterá mais no código de câmbio, mas sim na
ausência de comunicação de operações suspeitas ou na negligência em relação ao
monitoramento do comportamento atípico do cliente.
A responsabilidade penal pela evasão de divisas se concentra
inequivocamente no cliente, enquanto o banco responde apenas por eventuais
falhas graves de PLD/FT.
Conexões Perigosas
O esquema desvendado pela Operação Colossus não era uma mera
infração financeira. As investigações não apenas revelaram que a rede, que
movimentou R$ 61 bilhões em quatro anos, lavava dinheiro para o Primeiro
Comando da Capital (PCC), como também mantinham elos com o terrorismo
internacional.
Um personagem central, o operador Dante Felipini, foi
filmado no Líbano atirando com um fuzil AK-47. A investigação também conectou
Felipini a um doleiro libanês sancionado pelos EUA por fornecer carteiras de criptoativos
para o grupo libanês Hezbollah.
Embora Felipini tenha sido condenado a 17 anos de prisão por
organização criminosa, evasão de divisas e lavagem de dinheiro, ele foi
absolvido da acusação específica de financiar o Hezbollah por falta de provas.
O Papel do Presidente do Banco Central
No centro dessas mudanças regulatórias estava Roberto Campos
Neto, presidente do Banco Central. Antes de assumir o cargo público, Campos
Neto trabalhou no Banco Santander de 2000 a 2018, onde ocupou posições de alta
diretoria, incluindo a de chefe global de trading estruturado e renda fixa
para mercados emergentes.
A conexão com a Operação Colossus é direta: o Santander foi
um dos cinco bancos investigados, com quebra de sigilo telemático autorizada
pela Justiça por operações suspeitas realizadas a partir de 2017, período em
que Campos Neto ainda era um alto executivo na instituição.
A Resolução 277, que transferiu a responsabilidade dos
bancos para os clientes e na prática os anistiou, foi editada em 31 de dezembro
de 2022, sob a gestão de Campos Neto à frente do BC.
Essa sequência de eventos apresenta um caso clássico de
potencial captura regulatória, uma das consequências do chamado mecanismo de
“porta giratória” que tem sido normalizado no mercado financeiro.
Quando um regulador, ex-executivo de um banco sob
investigação federal, supervisiona uma mudança de regra que beneficia
diretamente seu antigo empregador ao anular o núcleo dessa investigação, o
princípio da imparcialidade regulatória é fundamentalmente desafiado.
A questão não é apenas a aparência de um conflito,
mas o resultado tangível que beneficiou uma instituição específica e
investigada.
Riscos Escondidos
Os benefícios a bancos específicos não se limitaram à
anistia cambial. Em outubro de 2023, o Banco Central editou outra norma que
permitiu ao Banco Master — um dos cinco investigados na Operação Colossus — não
contabilizar o risco de bilhões em ativos de alta periculosidade, como
precatórios e direitos creditórios.
O mecanismo contábil, embora técnico, foi extremamente
eficaz. O Índice de Basileia exige que os bancos tenham capital próprio para
cobrir os riscos de seus ativos.
A nova norma do BC aumentou drasticamente o fator de risco
para precatórios, mas criou uma “data de corte”: 30 de junho de 2023. Ativos de
risco adquiridos antes dessa data não precisaram ter seu risco recalculado.
Essa brecha foi uma tábua de salvação para o Banco Master. A
instituição, que nos últimos três anos quase quadruplicou sua carteira nesses
ativos (de R$ 2,25 bilhões para R$ 8,73 bilhões), já operava com um Índice de
Basileia de 11,54%, perigosamente próximo do mínimo de 10,5%.
Se a nova regra fosse aplicada aos seus ativos, o fator de
risco os multiplicaria por 13,5 vezes, fazendo seu peso no balanço explodir
para R$ 76 bilhões, provocando um colapso do seu índice.
A manobra permitiu que o banco, conhecido por práticas
agressivas como captação de recursos via CDBs de alta rentabilidade e gastos de
R$ 600 milhões em “serviços especializados” evitasse uma crise de
capital.
Na ocasião, o BC afirmou que agiu para “evitar efeitos
adversos nos mercados” e que o objetivo era “aprimorar o tratamento prudencial
de exposições a precatórios e direitos creditórios” dos bancos.
Porém, essa manobra não englobou todo o mercado, tratando-se
especificamente de uma intervenção direcionada com um impacto
desproporcionalmente positivo em um dos mesmos bancos — o Banco Master — que se
beneficiou da anistia cambial.
Enquanto o Santander, ex-empregador de Campos Neto, foi
beneficiado por uma anistia que neutralizou uma investigação federal, o Banco
Master, também investigado, foi salvo de uma crise de capital por uma manobra
contábil sob medida.
Essas alterações técnicas na regulação tiveram impactos
profundos, levantando sérias questões sobre a imparcialidade e os verdadeiros
beneficiários dessas políticas. A pergunta que fica é: a quem a modernização do
sistema financeiro realmente serve?
*Esta é a sexta reportagem da série Dossiê Fintechs, uma parceria entre o Jornal GGN e a Contraf-CUT que busca analisar por dentro do Sistema Financeiro Nacional
Fonte: Contraf-CUT
